O
que conhecemos hoje como Amazônia Brasileira passou por um longo e violento
processo de invasões promovido
por diversas nações europeias. Franceses, holandeses, espanhóis, ingleses e
portugueses disputaram o controle desse vasto território no decorrer de
séculos. À essa disputa sucedeu uma colonização sanguinária feita por Portugal. Ao longo do século
XVIII, a coroa portuguesa passou a utilizar diversas estratégias de caráter
militar para assegurar o domínio sobre os territórios invadidos. No processo de
invasão e colonização dessas terras Portugal explorou a mão de obra de negros e
indígenas através do desumano sistema escravocrata.
Nesse contexto, foram erguidas Fortalezas,
Fortes e Fortins, a fim de manter a posse dos territórios diante de outros
possíveis invasores. Segundo Machado (1989, p. 104): “A partir desse momento,
configura-se um novo sistema de controle territorial que se apoiava em pelo
menos quatro elementos: as
fortificações; o povoamento nuclear; a criação de unidades administrativas; e o
conhecimento geográfico do território.” A Fortaleza de São José
de Macapá (FSJM) começou a ser projetada nesse cenário. É uma fortificação
luso-brasileira, construída entre 1764 e 1782, com o objetivo de proteger as fronteiras
do Cabo Norte, atual estado do Amapá. A FSJM tem seu traçado feito pelo engenheiro
militar Henrique Galuzzi, com as colaborações do Arquiteto Antônio José Landi e
pelos engenheiros militares João de Groenfeld e Domingos Sambucetti.
Tecnicamente,
a FSJM é uma harmonia entre o traçado arquitetônico italiano de fortificação e
o estilo francês Vauban de 8º ordem.
Obedece o padrão de fortaleza abaluartada de quatro faces, constituído
por um núcleo principal quadrado com espessas cortinas e quatro vértices em
baluartes pentagonais com 14 (quatorze) canhoneiras lançantes, delimitando a
praça fortificada. Essa é a maior fortificação construída pelos portugueses na
América do Sul, em metros quadrados.
Levantar
essas muralhas custou o sangue e suor de indígenas e negros na condição de
escravizados. Isso, no entanto, não ocorreu sem a constante resistência desses
povos durante todo o processo. Segundo Camilo (2003, p. 135):
As fugas
realizavam-se em bandos formados por negros e negras de particulares e da
Câmara, que tinham ao seu favor o meio físico da região, pois a bacia
hidrográfica do Amapá é formada por lagos, furos, igarapés e pelos rios
Oiapoque, que separa o Brasil da Guiana Francesa, o Cassiporé, o Calçoene e o
Araguari, que é formado por muitas cachoeiras propícias à formação de quilombos.
Nesses
espaços de resistência, negros, negras e indígenas podiam viver e lutar pela
liberdade. Plantavam, comercializavam e tentavam de todas as formas
permanecerem livres, apesar das muitas tentativas dos portugueses em recaptura-los
para novamente explora-los na construção da fortaleza ou em atividades
agrícolas.
Embora
a fortaleza tenha sido construída com objetivos puramente colonizadores e ter
sido instrumento de exploração e tortura de negros e indígenas, ao longo das
décadas ela tem passado por um processo de ressignificação de seus usos e espaços.
Primeiramente, porque ela passou a ser utilizada como um símbolo estatal,
ostentado em bandeiras, logomarcas e campanhas relacionadas ao estado do Amapá
e à cidade de Macapá. Mas essa ressignificação desponta principalmente pelo
fato de que as populações locais têm tornado a FSJM um espaço de domínio
popular, capaz de abrigar a pluralidade de identidades coexistentes dentro do
Amapá.
Desta
maneira ela começa a se desprender de seus sentidos coloniais, passando a ser
um Patrimônio Cultural do povo do Amapá. Seus espaços passam a ser utilizados
por povos e grupos que tiveram seus ancestrais explorados/marginalizados/invisibilizados
naquele mesmo lugar. A Fortaleza, portanto, passa por uma metamorfose de
sentidos, e aí se inicia a sua construção enquanto local de articulação social
e política de diversos grupos, inclusive símbolo de resistência pelas vozes
negras e indígenas.
Os
indígenas do povo Wajãpi veem nela a Mairi
de suas narrativas cosmológicas, “onde o criador Janejar havia abrigado [e protegido] seus antepassados do
cataclisma que eliminou a primeira humanidade” (GALLOIS, 2007, p. 71). Já os
negros e negras do Amapá, remanescentes daqueles que foram trazidos à força da
África, cantam os ladrões e dançam o Marabaixo dentro daquelas muralhas, em
ocasiões como o aniversário da fortificação. Vez ou outra, rola até roda de
capoeira ali dentro.
A
Fortaleza de São José de Macapá não é mais reconhecida somente como um símbolo
de ostentação colonial e opressão. Ela é um patrimônio dinâmico que (re) existe
na memória individual e coletiva do povo amapaense, reunindo assim
características tanto comuns quanto heterogêneas dentro da diversidade de
grupos que com ela interagem durante as gerações que passam.
Referências
Bibliográficas
BRITO,
Carla Marinho. Visualidades da Fortaleza de São José de Macapá em interação
com uma escola pública da cidade de Macapá. Dissertação (Mestrado em Artes
Visuais), UFPB, 2013.
CAMILO,
Janaína Valéria Pinto. Homens e pedras
no desenho das fronteiras: a construção da Fortaleza de São José de Macapá
(1764/1782). Dissertação (Mestrado em História), Unicamp, 2003.
CASTRO,
Adler Homero Fonseca de. Muralhas de pedra, Canhões de bronze, Homens de
ferro: fortificações do Brasil de 1504 a 2006. Rio de Janeiro: Fundação
Cultural Exército Brasileiro, 2009.
GALLOIS,
Dominique. Gêneses waiãpi, entre diversos e diferentes. Revista de Antropologia, v. 50, nº 1, 2007.
MACH
ADO,
L. Mitos e realidade da Amazônia brasileira no contexto geopolítico
internacional (1540-1912). Tese (Doutorado em Geografia Hmana),
Universidade de Barcelona, 1989.
*Mulher negra e quilombola, graduada em Licenciatura em História pela Universidade Federal do Amapá, Mestranda no Programa de Pós-Graduação de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Amapá - PPGSA, com concentração em sociologia
*Licenciado e Mestrando em História (PPGH/Unifap). Agente da Comissão Pastoral da Terra do Amapá.
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