quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Apagão no Amapá: o descaso e o desinteresse público são, além de tudo, racistas

O apagão de 2020 no Amapá é só a ponta do iceberg. O descaso com a população desse estado amazônico é histórico. E ele tem fortes e evidentes contornos racistas.


Foto: Rudja Santos

Higor Pereira*

Macapá, 11 de novembro de 2020, nono dia de apagão

Estou escrevendo da zona oeste de Macapá, mais precisamente da Rodovia Duca Serra, que liga a capital do Amapá ao município de Santana (segunda maior cidade amapaense). Aqui temos energia elétrica desde as 6h40 da manhã de hoje, 40 minutos após o horário estipulado pela Companhia de Eletricidade do Amapá (CEA) para o início das 6 horas com fornecimento de energia para meu bairro pelo sistema de rodízio. A cada 6 horas o fornecimento é interrompido e só 6 horas depois voltamos a ter energia. O sistema de revezamento proposto pela CEA, porém, é uma bagunça total. De domingo para segunda, por exemplo, ficamos sem luz por 13 horas seguidas. E assim tem sido a vida do amapaense desde sábado, 7.

Quando amigos de outros Estados me perguntam como estou, respondo que aqui em casa o pior já passou. Isso é em parte verdade, já que entre os dias 3 e 7 de novembro não tivemos energia nem pelas míseras 6 horas do rodízio e tivemos que nos submeter a coisas inimagináveis para conseguir água e “dormir” à noite. Mas nem isso milhares de outras famílias têm, já que há localidades ainda não contempladas pelo rodízio.

Algo que tenho dito desde o início desse tormento é que o apagão no Amapá é duplo: nos falta energia elétrica (e, consequentemente, ficamos sem água, sem alimentos, sem internet...) e nos falta informação. O incêndio na subestação 1 da Zona Norte ocorreu na noite do dia 3 de novembro, mas somente na quinta-feira, 5, começamos a ter noção do que estava de fato acontecendo. Isso porque o Governo do Estado, a Companhia de Eletricidade do Amapá e o Ministério de Minas e Energia ficaram em silêncio. Deixaram a população sem qualquer perspectiva e à mercê de todo tipo de fake news, especulação e preocupação.

Quando as informações começaram a chegar, porém, elas causaram temor, revolta e indignação. Os prazos para a normalização no fornecimento de energia elétrica para o povo do Amapá são absurdos: de 15 a 30 dias! O sistema de rodízio, como eu já disse, é uma bagunça e, vale acrescentar, é totalmente injusto: os horários divulgados não são seguidos; há bairros (principalmente do centro da cidade de Macapá e bairros nobres) em que o fornecimento de energia é feito 24 horas por dia; e mais da metade dos bairros ficam sem energia das 00h às 6h da manhã – o que tem causado grandes transtornos no sono da população, devido ao calor constante. 

Por conta dos problemas de comunicação - somada ao apagão, foram dias de ausência total ou parcial de sinal de operadoras de telefonia e instabilidade nos serviços de internet, que ainda persistem - quase nada sabemos da situação da população e das comunidades do interior do Amapá. Há localidades onde não havia, mesmo antes do apagão, sinal de telefone ou internet e agora, nem nas sedes do serviço público municipal tem. Tudo isso tem dificultado o acesso à informações. Mas elas têm chegado aos poucos e são desoladoras.


Se na cidade já está uma situação difícil, no interior é um cenário exponencialmente pior.

No Arquipélago do Bailique, distrito de Macapá, falta energia há pelo menos 3 semanas. Com o apagão e a dificuldade de acesso à água potável em todo o estado, os mais de 7 mil moradores do Bailique encontram-se desesperados. Segundo relatos dos moradores, o rio está salgado (devido fatores que, admito, eu desconheço) e portanto impróprio para o consumo. Eles pedem socorro.

Nos quilombos mais próximos da capital, que fazem parte do que chamamos de Macapá rural, a situação não é menos preocupante. O rodízio de energia não alcançou, por exemplo, o Curiaú e a Casa Grande, comunidades remanescentes de quilombo muito próximas do perímetro urbano municipal. Ali, a população se revoltou e tem feito manifestações desde, pelo menos, sexta-feira, 6 de novembro. Manifestações estas que têm sido reprimidas pelo Estado.


Ficar sem energia e água pode, mas se revoltar não?


Foto: Rudja Santos

Essa pergunta também tem sido feita pelos moradores dos bairros periféricos e dos conjuntos habitacionais populares de Macapá – que têm se manifestado nas ruas já há vários dias e têm sofrido com a repressão policial pela Polícia Militar do Amapá e pelo Batalhão de Operações Especiais (BOPE). Balas de borracha, gás lacrimogêneo e até água (!!) são disparadas contra a população revoltada. O Estado não chega com energia e água potável, mas chega com violência e brutalidade. Na noite do dia 7 de novembro, uma criança de 13 anos foi atingida no olho por um tiro de bala de borracha que partiu da polícia militar. Ficou cega! Esse crime ocorreu no Congós, bairro periférico da Zona Sul de Macapá.

Algo em comum há em todos esses casos. Quem vive nesses bairros e localidades é uma população majoritariamente negra e pobre. Por isso, ainda que o apagão tenha atingido, ao menos parcialmente, toda a população do Amapá, é muito evidente que as “soluções” apresentadas (como o rodízio de energia elétrica) não têm atendido minimamente aos interesses de quem compõe mais de 80% do povo amapaense: os negros. De outro modo, a repressão do Estado é totalmente voltada para essa mesma parcela da população. Não há qualquer relato de violência policial em bairros nobres, nos quais vivem os amapaenses brancos, ricos e muita gente da classe política, que hoje anda disputando cargos nas eleições municipais. 


A solidariedade entre nós tem sido nossa única arma


Foto: Cleiton Rocha

Ontem, 10 de novembro, recebemos a informação de que os povos indígenas do Oiapoque (município não atingido pelo apagão) estão enviando para Macapá sacas de farinha de mandioca para distribuição entre os moradores das áreas de ponte. Coletivos negros e parceiros, como a Utopia Negra Amapaense, a Rede Fulanas, o Quilombo Sankofa e outros têm recebido doações de água, alimentos e dinheiro, revertido na compra de itens básicos para a sobrevivência para distribuição em áreas quilombolas e bairros periféricos.

Distribuição de água no Congós. Foto: Cleiton Rocha

Onde o Estado e as representações políticas não chegam - e nem querem chegar, a gente se vira. É nós por nós. 

#SOSAmapá #AmapáPedeSocorro #UtopiaNegraAmapaense



Campanha de doação de água, alimentos e álcool para os quilombos do Amapá

Campanha de doação de água do Utopia Negra Amapaense

* Mestrando em História (Unifap). Agente de pastoral da CPT Amapá.
Texto revisado por Luana Darby Barbosa.

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

ESCAVANDO HISTÓRIAS: O DESPERTAR DO INCONSCIENTE NA BUSCA POR UMA ANCESTRALIDADE QUE REFLETE O QUE SOMOS AGORA


Rodrigo e sua mãe Soraya, foto do arquivo pessoal

Por - Rayane Penha  - Macapá 

Na cultura do povo Bancongo que vive na costa atlântica do continente africano existe um ditado popular que fala: "a anterioridade não é um pretérito que se encerra em algo que passou e se acabou, a anterioridade é algo que se faz presente". Refletindo sobre o momento presente da sociedade brasileira, principalmente em um contexto político tão aflorado em nossos cotidianos me veio a necessidade de olhar para essa anterioridade do nosso país, um olhar sobre as raízes desta história que parecem muitas, mas no fundo é uma só, a história do Brasil, só que hoje, contada por brasileiros, nos legitimando, nascidos desta terra. O pensamento sobre nossas identidades raciais e culturais sempre veio acompanhado da palavra “diversidade”, mas a falta de clareza sobre as singularidades dessas identidades nos levou a uma sociedade extremamente ignorante sobre sua própria identidade, o que nos leva a um país racista, cheio de desigualdades sociais e econômicas em que vivemos na atualidade.

Elane Albuquerque, 49 anos, mestre em educação e autora do livro “Vejo um  museu de grandes novidades, o tempo não para… Sociopoetizando o museu e musealizando a vida”, faz um registro histórico e cultural do estado do Amapá. Ela diz que ao reconhecer uma ancestralidade a gente perpassa por esses processos de desconstrução de tradições racistas, de subalternidade e invisibilidade de povos e culturas. “No Brasil a questão da ancestralidade se constrói a partir da história de um país colonizado e hierarquizado socialmente”. 

Uma pesquisa realizada pelo Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) fez uma ampla análise genética da ancestralidade brasileira e traz a tona alguns traços culturais, como por exemplo, casamentos entre povos das mesmas culturas que demonstram que a miscigenação no Brasil é bem menor do que a que é colocada pelo mito da democracia racial do nosso país. Como em Salvador que apresenta uma população de maior origem africana com 50,8%, seguida da europeia com 42,9% e por último ameríndia com 6,4%. São dados que se invertem quando falamos da região Norte do país, o que demonstra que para além dos fenótipos que carregamos, há diversas formas de culturas e olhares para a sociedade, ao olharmos para essas ancestralidades podemos descobrir novas formas além dessas que nos são apresentadas.

“Só agora que comecei a escrever a minha aldeia, a minha aldeia vive perto de mim, a minha aldeia está dentro de mim. Fecho os olhos, tampo os ouvidos e escuto a minha aldeia. A minha aldeia não sai de mim, ela é a minha cicatriz tatuada.”, diz Maurinete Lima em seu livro Sinhá Rosa. A Poetisa recifense que lançou seu primeiro livro aos 74 anos, faleceu em 2018. Seu livro é uma conexão com o ancestral através da poesia, uma perspectiva histórica sobre o Brasil ao mesmo atualizada, anticolonial e futurista.

Faz alguns bons anos que eu venho refletindo sobre minha identidade racial, ao longo desses anos pareceu que eu andava fazendo escavações cada vez mais profundas, sem chegar a uma resposta exata da pergunta “quem eu era?”

Na casa dos meus avós no Vila Nova, comunidade onde cresci

 Crescendo em um povoado de ribeirinhos e garimpeiros onde os traços caboclos e negros eram comuns, a única estranheza era quando brancos que trabalhavam na mineradora chegavam por lá, eles faziam o mesmo serviço do meu pai, mas meu pai negro da pele escura os chamava de doutor e eles brancos chamavam meu pai de “peão”.

Aquelas cenas repetidas tantas vezes me causavam um nó no estômago, não porque eu sabia o que era racismo, mas porque eu sabia que meu pai era um homem importante, não só para mim que era sua filha e o via como herói, mas para todos da comunidade que o respeitavam como uma liderança local. Ver a submissão dele diante dos brancos era doído, sua voz pra dentro, os olhares baixos e a concordância de tudo; logo ele tão questionador... De gritos para ser escutado, de olhares firmes, logo ele, ali com os brancos de cabeça baixa.

Na adolescência, os confrontos sobre essas relações com o meu pai se tornaram intensos. Eu, “estudada”, como ele dizia, não suportava suas falas extremamente racistas, gritava para ele se olhar no espelho, olhar seus cabelos crespos, o seu nariz, a sua pele, ele era preto! Então ele me rebatia dizendo:  “eu sou preto, mas meu sangue é branco”. Eu, estudante de escola pública a vida inteira tive a dádiva de ter professores que não apenas ensinavam, mas educavam pra vida. Através deles que aprendi a refletir sobre mim e sobre a história do Brasil e aprender com eles estava para extensão das salas de aula. Eles enquanto pessoas me ensinavam que o Brasil não começou em 1500, que os negros não eram escravos, mas foram escravizados, que o dia do índio, apesar da escola insistir em folclorizar, não era folclore, os índigenas existem e resistem, hoje e desde sempre.

 Eu voltava para casa, cheia de questionamentos, confrontava meu pai e minha mãe pelas atitudes e palavras racistas, misóginas, homofóbicas. Não conseguia entender como duas pessoas tão oprimidas tinham um discurso tão opressor. Em minha mãe eu até compreendia, ela cabocla da pele clara, se agarrou ao tom de sua pele para negar os traços indígenas que carrega. Até hoje se eu falar que ela tem traços indígenas ela se benze e diz “cruz credo”. Mas eles estão lá nos seus olhos, no formato do rosto, em seus cabelos herdados de meu avô, homem da floresta e repassados para mim. Recentemente, aos 23 anos, em uma academia de São Paulo eu vi a instrutora passar a mão no meu rosto admirada porque nunca tinha visto uma pessoa indígena, mesmo eu dizendo para ela que eu não era indígena, que eu vinha da amazônia, mas não era indígena. Disse isso não por uma negação de identidade, mas por entender que hoje eu apenas carrego características físicas daqueles que antes de mim tiveram essa vivência, que para mim esse lugar de afirmação é daqueles que hoje vivem ser indígena e mais do que isso, por desconhecer esse outro lado da minha história. Esse episódio era um ponto de partida para chegar em raízes ainda mais profundas sobre quem eu sou.  Eu que me afirmo hoje mulher negra percebi que essa afirmação vinha muito por conhecer a negritude histórica e cultural que habita em mim, pelo conforto de conhecer a história da minha família paterna, mas a miscigenação presente no meus traços físicos grita pela necessidade de aprofundar ainda mais minhas raízes.

Nessa busca de mim acabei encontrando muitos outros, dois deles grandes amigos que estavam passando por processos parecidos, escavando suas histórias e vendo o reflexo delas em suas atualidades. Samara Alencar, produtora executiva de 30 anos, oriunda do município de Afuá no interior do Pará e Rodrigo Aquiles, publicitário de 33 anos, nascido em Salvador, Bahia, e amapaense há mais de 20 anos.

Os dois vivenciando conexões com suas ancestralidades em uma busca não só de identidade mas por algo que Samara chama de “tomada de consciência, tomar consciência do quanto que a gente ta voltado pra essa superficialidade, pra essa negação, é se empoderar enquanto ser histórico, enquanto ser político e essa é a minha história, esse é o meu lugar”.

Samara quando criança em Afuá, foto do arquivo pessoal. 

 “Essa percepção de que são onde estão minhas raízes, então eu negava isso e eu negava a mim mesma a minha própria história” É em Afuá, a terra rodeada pelas águas doces que banham as ilhas do Marajó que a busca de Samara hoje é voltada para preservar as memórias de sua avó e por descobrir mais sobre a identidade de seus bisavós e consequentemente mais sobre a sua. No seu esforço em recobrar as memórias da avó, o que me chamava atenção no que ela me contava era o fato dela sempre se referir às pessoas pelo grau de parentesco e nunca pelos nomes, algo que depois ela confessou ser por desconhecer os nomes de seus ancestrais. Algo tão corriqueiro como nossos nomes e desconhecemos tão profundamente os daqueles que fazem parte de nós. Mesmo que seja algo presente em nossos cotidianos, como quando ela me conta que sua avó materna sempre teve o costume de contar histórias sobre a família: “minha vó, a gente senta pra tomar um cafézinho e ela já começa a contar e ela tem uma visão muito lúcida ainda, muito positiva da vida”.  Ela diz que nunca tinha se interessado profundamente sobre as histórias, até recentemente “Eu sinto que to mais preparada para receber as coisas, tanto é que quando ela conta aí eu faço perguntas. Aí ela vai explorando camadas mais profundas disso”.

Através de conexões com grupos de mulheres ela conta que foi onde surgiu de forma mais concreta o interesse por registrar as memórias da família e de conhecer melhor a história que também é dela.

No grupo, ela percebia as relações conflituosas que relatavam principalmente sobre os vínculos com os femininos nas famílias. Percebendo que nela haviam feridas emocionais para além da relação consciente que estabelecia com a família, ela trouxe essas experiências a tona e decidiu que precisava olhar para isso, “porque você tá sofrendo internamente e inconscientemente. Pra eu me entender e fazer as pazes com a minha história eu preciso entender as histórias das minhas ancestrais, entender que as mulheres que vieram antes de mim elas sofreram muito e tem algumas que estão vivas e estão sofrendo”. Samara coloca que mesmo com todo um debate sobre o feminismo, ele não alcança as camadas mais populares e diz que se sente responsável em levar esse conforto em relação ao feminino para as mulheres de sua família. “É processo de buscar estar sempre consciente de que os conflitos que eu vivo são parece repetições de processos inconscientes da minha estrutura familiar principalmente feminina”.

Em um ato de teimosia em não repetir a sina das mulheres de sua família, Samara reage contra o próprio ego, que diz ter sido o seu maior desafio na sua busca. “Na minha história, na história de vida da minha avó tem muito disso esse caminho de expiação até chegar o momento que acontece uma coisa milagrosa”. A história de Samara e das mulheres de sua família é o milagre da escolha diária de preservar essas memórias e a partir delas construir novas narrativas.

 O baiano mais amapaense que conheço!

 Soraya gravida do Aquiles, foto do arquivo pessoal

“Eu tenho muitas lembranças dessa fase, algumas pessoas dizem que é impossível, mas eu lembro de muitas coisas”. Aquiles me conta sobre sua memória mais marcante da infância. Diz que foi na vinda de Salvador para o Amapá, que devia ter  3 ou 4 anos quando ele e a mãe Soraya fizeram essa travessia de ônibus. Lembra de cantar músicas sertanejas dentro do ônibus, ele sorri ao lembrar que as pessoas perguntavam por ele “os passageiros já sabiam que era eu que cantava e perguntavam onde é que tava o menino cantor, cantava Zezé de Camargo, Leandro e Leonardo”. Talento refletido nos dias atuais, Aquiles além de publicitário também é músico.

Sua retomada era ainda mais literal, depois de mais de 20 anos no Amapá e com uma história familiar cheia de lacunas, ele estava voltando pra Salvador para reencontrar seu avô Cândido “Meu avô não gosta de ficar parado em um lugar só, minha mãe fala isso…”  talvez uma herança familiar para Aquiles, que carrega em si uma tranquilidade e fala pausada, mas olhares profundos que denunciam uma inquietude com o mundo. Através dessa inquietude e de suas reflexões sobre sua identidade ele partiu para um terreno que faz parte de si, mas que havia se tornado desconhecido. A última vez que ele esteve na Bahia tinha 9 anos. Ao virem para o Amapá ele disse   

Foto do arquivo pessoal, Rodrigo em Salvador em frente a casa da família

para a mãe que queria morrer na Bahia. “Eu pego muito esse momento como referência pra essa minha volta pra lá, não sei como é que vai ser, mas acho que é bem forte ainda essa minha ligação”. Na época a ligação familiar que tinha era com a família adotiva da mãe, agora o reencontro não é só com os laços familiares de sangue, mas com todas as relações socioculturais de um lugar do qual ele também é pertencente.

O pertencimento é algo que Aquiles confessa não ter, nas relações familiares e no lugar de “estrangeiro” que por muito tempo se sentiu ao estar no Amapá e como agora se sente ao voltar a Salvador. “Eu vou chegar lá como um estrangeiro, como um amapaense, isso é estranho, não tem como eu chegar lá e as pessoas me verem como um baiano”. Mas a retomada se apresenta como necessária em sua vida, a falta de pertencimento nas relações familiares e aos lugares desperta a lacuna da identidade, a sua busca é também por essa conexão, que ele diz que nunca foi feita por sua família, mas que hoje sente que é seu dever fazer “É algo que minha mãe nunca teve também, talvez caiba a mim procurar um pouco mais sobre a nossa história”. Aquiles coloca a necessidade de sua retomada como a experiência que no fundo lhe trará fortalecimentos.

Da firmeza das terras do sertão para a fluidez do amazonas, a mãe de Aquiles construiu nas terras tucujus novas raízes. Quando eu pergunto sobre sua mãe, é visível que o menino não pertencente, pertence sim a um lugar, um lugar seguro que é o coração da mãe, Soraya. Ele respira fundo e com os olhos marejados me responde: “Minha mãe é sensacional!”, conta que por muito tempo foram só os dois. “Ela fez tudo pra mim”, ele reconhece, mas diz que parece que nunca vai ser suficiente, que tudo que quer é vê-la feliz, depois da infância e da adolescência difícil que ela teve, encontrou aqui o lugar de superação, emprego, estudos, amores e uma nova filha, pro Aquiles chamar de irmã. “Ela nunca desistiu”,  diz.

Ele apresenta a busca por sua ancestralidade como um ato político, que é para si e por sua família. Algo que lhe foi negado e até mesmo distorcido como a história do nosso país, a consciência colonizada que nos acompanha até os dias de hoje, o apreço pelo externo, a não valorização daquilo que vem de nós, romper com isso é despertar o inconsciente das nossas raízes. “A gente termina se desvinculando de uma identidade que é imposta, para aceitar sua própria identidade, sua própria individualidade”. Para Aquiles, só o fato de procurar entender de onde ele veio já o fortalece por saber quem veio antes dele: “algo que é como se a pessoa fosse bem maior do que ela é” . Ele me conta que nas conversas com mãe, os dois sempre refletem sobre a energia da avó materna, diz que sente como se algo sempre o tivesse guiando, colocando no caminho certo. “A impressão grande que a gente teve é que realmente tem alguma coisa desse lado da família, tem algo por alí que vem moldando meu presente hoje. Talvez seja isso que eu esteja tentando descobrir também”.

Thayse Medeiros de 32 anos é psicóloga e diz que a ancestralidade está diretamente ligada a uma ideia de inconsciente coletivo. “É o que anterior ao que é meu já é existente, mas é meu também”. Segundo Thayse, a psicologia analítica, que é uma teoria da  psicologia, visa o ser humano como um todo, em suas questões biológicas, emocionais, físicas, espirituais, geográficas, em todo o seu contexto geral, originada a partir das idéias do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung. Apesar da psicologia analítica se mostrar abrangente relacionado às questões humanas, ela não é tão bem aceita pelos profissionais da área e ainda bastante desconhecida pelos leigos. Thayse coloca que muitos profissionais não aceitam por negarem a existência do inconsciente. Ela diz que a psicologia surge como um estudo da mente e da alma e que negar o inconsciente é negar a alma, logo se nega também a psicologia. Para ela, o trabalho com o outro se dá a partir da crença no seu inconsciente, que não tem como trabalhar com o ser humano só a partir do que ele é agora, porque isso seria trabalhar o momento e não o ser humano. “A psicologia analítica busca a individuação, o encontro com o eu mesmo, com o meu self. É sair do ego, do consciente que a gente chama, pra parte inconsciente, pra eu buscar o meu eu interior, o meu subjetivo”.

A negação do inconsciente que vive em nós me assusta, é como uma escolha em continuar dormente, diante de uma história ainda em retalhos que é o Brasil, diante da negação de uma identidade nossa. Nós viemos, nós somos todos aqueles que hoje são colocados às margens. A estrutura do processo de colonização faz com que hoje a gente negue que somos pretos, indígenas, parentes de povos que foram escravizados para construir este país, todos querem ser descendente de europeus, o lado “bonito” da história e como em uma ilha de edição, eles editam a memória conforme o que acham que a sociedade vai achar melhor.

 

 

 

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

DIREITO E VIOLÊNCIA: O RACISMO E O PRIVILÉGIO POLICIAL

 

 

DIREITO E VIOLÊNCIA: O RACISMO E O PRIVILÉGIO POLICIAL




Foto: Taymaz Valley CC

Nilson Gomes de Oliveira


No dia 18 de setembro de 2020 em Macapá, acompanhamos um caso “isolado” de violência policial praticado contra Eliane Silva, formada em Pedagogia, professora e mulher negra, suscitando a seguinte discussão: sendo o racismo estrutural elemento central para discutir as razões da violência policial sofrida por Eliane Silva, de que modo podemos enxergar os privilégios do policial militar no direito brasileiro?

Antes de iniciar a presente discussão propriamente dita, cabe o seguinte esclarecimento: o direito na sociedade capitalista assume um caráter técnico, que afasta de suas análises questões sociais, políticas e econômicas, destinando o ideal de justiça para normas e legislações escritas. Por isso, o que entendemos por privilégio atravessa avaliações práticas, ou seja, não é questão meramente conceitual, mas trata-se de como podemos ver na realidade social a técnica jurídica a partir de critérios objetivos presumidos como verdade pelo Estado.

Tomemos os crimes militares e algumas questões no direito brasileiro:

Direito nem sempre é direito

Ao estudarmos a Lei de Crimes Hediondos (Lei nº 8.072/90) percebe-se que não foi atribuída aos crimes militares natureza hedionda. Logo, o latrocínio, extorsão qualificada pela morte, extorsão mediante sequestro, crime militar de genocídio e estupro não passam pela vigilância penal dos crimes hediondos, sendo estes tipificados pelo Código Penal Militar. 

Exemplificando, pensemos num policial militar, no interior de uma determinada organização militar constrangendo uma mulher (civil) à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça, configura-se estupro militar, com pena de 3 (três) a 8 (oitos) anos, conforme o CPM, enquanto o estupro previsto no Código Penal a pena é de 6 (seis) a 10 (dez) anos, sendo também um crime de natureza hedionda.

Diante disso, devemos reconhecer a disparidade de tratamento do crime militar e do crime comum. Em outras palavras, privilégio com respaldo legal, no qual, o Estado entende que o militar deve ser responsabilizado com sanção penal por legislação especial, com Justiça Especializada. Alguns podem sustentar que o Código Penal Militar não institui privilégios, não revelando inconstitucionalidade, mas não podem negar o tratamento diferenciado que os militares gozam no direito brasileiro.

 O art. 125, parágrafo 4º da Constituição Federal de 1988 diz que compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares, ações judiciais contra atos disciplinares militares, cabendo ao tribunal militar decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças. Por isso, a competência da Justiça Militar Estadual está diretamente ligada ao conceito de crime militar (art. 9º, CPM). No mais, a situação que podemos ter um policial militar sendo julgado na justiça comum estadual é praticando crime doloso contra vida de um civil, sendo competência do Tribunal do Júri (art. 125, parágrafo 4°, CF-88).

Nos casos em que o plenário do Tribunal do Júri desconsiderar o dolo, e considerar o crime culposo contra a vida, não haverá sanção penal na justiça comum estadual. Diante disso, o processo seria redistribuído para a Justiça Militar Estadual, pois seria de interesse da Justiça Militar processar e julgar este caso.

A violência contra negros e negras no Amapá

A violência policial sofrida por Eliane Silva também nos leva a pensar sobre que modelo de segurança pública pretendemos construir nas próximas décadas. O Atlas da Violência em 2018 levantou o seguinte dado: no Amapá a morte de não negros chega a 7,8%, em um universo de 100 mil habitantes. Isso quer dizer que no Amapá existe um caráter racial na morte, possivelmente ligado a um caráter de classe. Diante disso, a principal conclusão do Atlas da Violência é que uma das principais facetas da desigualdade racial no Brasil é a forte concentração de homicídios na população negra. Observemos o seguinte apontamento:

Já o Anuário Brasileiro de Segurança Pública analisou 5.896 boletins de ocorrência de mortes decorrentes de intervenções policiais entre 2015 e 2016, o que representa 78% do universo das mortes no período, e, ao descontar as vítimas cuja informação de raça/cor não estava disponível, identificou que 76, 2% das vítimas de atuação da polícia são negras (ATLAS, 2018).

Se os números apontados sobre a segurança pública falassem diriam que devemos considerar os índices sociais sobre a violência contra negros e negras, porém como política de segurança pública não se trata de somar 2 + 2, mas sim de disputar o Estado e sobre como este gerencia a política de segurança. Devemos colocar em nossa agenda cotidiana o debate sobre os serviços públicos prestados por pessoas de direito público e seus agentes, para que estes respondam pelos danos causados a terceiros, pressionando-os para que venham a considerar o racismo estrutural em suas ações.

O Comando-Geral da Polícia Militar em cada início de semestre programa cursos, palestras e similares sobre direitos humanos e relações públicas, para toda corporação militar, porém os números da violência policial não corroboram com os preceitos desses cursos e palestras.

 Enquanto, isso o policial militar que incorre na violência contra negros e negras poderia perder o posto e a patente? A resposta para esta pergunta depende do “se” o policial for julgado indigno do oficialato ou com ele incompatível. Assim, a pergunta que fica no ar é: o policial que agrediu covardemente Eliane Silva, praticando contra ela uma abordagem racista é indigno do oficialato amapaense ou com ele é compatível?

Esta pergunta deveria ser respondida em sessão pública na Assembleia Legislativa do Estado do Amapá (ALAP), convocando para responder a esta pergunta entre outras, o Secretário de Justiça e Segurança Pública do Amapá (SEJUSP). A Comissão de Segurança Pública (CSP) deve realizar audiência pública com o movimento negro do Amapá, mas não devemos esperar a iniciativa parlamentar, também podemos realizar reclamações perante a Comissão contra atos ou omissões de autoridades públicas prestadoras de serviços públicos.

A segurança pública no Amapá, portanto, deve ser levada em consideração do ponto de vista racial, sobretudo se houvesse requerimento de um terço dos membros da ALAP, ou seja, 8 (oito) deputados estaduais para instituir uma Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a Polícia Militar do Amapá e o modos operandi de sua abordagem policial, em especial contra negros e negras.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrural / Silvio Luiz de Almeida – (Feminismos Plurais / coordenação de Djamila Ribeiro) – São Paulo: Pólen, 2019.

ATLAS da Violência 2018. IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Brasília, DF, jun, 2018.

LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação penal criminal especial comentada: volume único – 4º. ed.rev. – atual. e ampl. – Salvador: JusPODIVM, 2016.

   * Estudante de Sociologia - (UNIFAP)

     Estudante de Direito – (CEAP)

 

 

    

 

O DIREITO COMO INSTRUMENTO DE DOMINAÇÃO RACIAL NO BRASIL

 

O DIREITO COMO INSTRUMENTO DE DOMINAÇÃO RACIAL NO BRASIL



Foto: domingos Leonelli


Por - Nilson Gomes de Oliveira


O ano de 2020 marcado pela pandemia da Covid-19 tem provocado reflexões, discussões, debates e intervenções de intelectuais, estudantes, movimentos sociais e instituições em geral.

Esse contexto é fundamental, apesar de muita dor e sofrimento em decorrência das mortes provocadas pela covid-19. A partir do atual movimento histórico mundial e nacional, temos a oportunidade de evidenciar as bases racistas do sistema social proposto pela sociedade ocidental branca.

No primeiro semestre de 2020 a partir da morte de George Floyd por um policial branco nos Estados Unidos sob a pandemia do coronavírus emergiu uma onda antirracista sistemática de questionamentos sobre as relações raciais no mundo que impactaram o debate público no Brasil.

Com a emergência de um debate antirracista no Brasil, é preciso falar também sobre o Direito como um campo que contribuiu para a dominação social, política e econômica dos brancos sobre os negros.

Para iniciar essa discussão, partimos da seguinte pergunta: o direito é branco e de classe? Num primeiro momento essa pergunta parece simples, porém implica em uma reposta complexa.

A história do direito no Brasil é construído pelo sistema colonial e escravocrata que dividia corpos negros dos corpos brancos de um ponto de vista racial e jurídico, enquanto o direito na Europa do século XVII, XVIII e XIX se desenvolvia sob a luz dos direitos civis e políticos com um viés de classe.

O direito é de base eurocêntrica e de classe, em que o sujeito de direitos foi a construção do projeto de homem iluminista e branco, que propunha as relações sociais e econômicas reguladas pelo mundo jurídico, garantindo a vida, a liberdade e a dignidade. Porém, o direito ao chegar ao Brasil colônia, em especial com a vinda da família Real em 1808, e sobretudo no Brasil Imperial (1822-1889), o Direito operou sob um contexto em que classe social não era a ordem do dia e que a base de dominação econômica era dominação europeia do homem civilizado sobre os povos selvagens do Novo Mundo, que não tinham nem Rei, nem Lei e nem Estado do ponto de vista europeu.

Nesse bojo, a formação jurídica era um marcador social e de raça, em decorrência de uma sociedade marcada pela autoridade do senhor da casa grande. É de conhecimento geral que o Brasil colonial e imperial passou por um processo político e social de formação econômica excludente e racista, enquanto a Europa se agitava com eventos políticos e sociais visando a construção ontológica do homem branco europeu, sendo o iluminismo o fenômeno mais notório.

Silvio Almeida (2019) afirma que o iluminismo foi o fundamento filosófico das grandes revoluções liberais que em nome da liberdade visava abolir a sociedade absolutista por uma moderna sociedade burguesa.

Karl Marx em 1848 no Manifesto do Partido Comunista já lançava mão sobre a “descoberta” do Novo Mundo como uma maneira de entender as grandes navegações europeias na África e na América como um campo de ação das mercadorias. Ele esqueceu de acrescentar que o campo de ação das mercadorias era produto direto da exploração dos corpos negros, em que somente a civilização branca usufruía dos avanços jurídicos e econômicos da sociedade capitalista que substituiu a sociedade feudal.

   Silvio Almeida (2019) diz que as revoluções inglesas, americana e a francesa reorganizaram o mundo. Com essa reorganização, o sistema colonial sustentou as grandes metrópoles europeias com a escravidão dos povos negros. Por isso, o projeto liberal-iluminista de homem e sociedade não tornava todos os homens iguais.

Almeida (2019) ao afirmar que o projeto-iluminista não propunha igualdade para todos os povos, exemplifica a Revolução Haitiana em 1791 como o momento em que iluminismo europeu foi posto de frente com o seu princípio de liberdade e não reconheceu a liberdade para um provo que não fosse branco. Isso é tão forte, que nos cursos de Direito ao estudar Direitos Humanos, a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão na Revolução Francesa de 1789 é o marco histórico do ensino jurídico, alçando tal declaração como símbolo de liberdade. Isto significa que o direito moderno é resultado da produção intelectual do homem branco.

Não é por acaso que Frantz Fanon (2008) em Pele Negra, Máscaras Brancas reivindica a história do negro antilhano na sociedade francesa do século XX, como uma história de inferioridade fruto de processo econômico e psicológico em que o negro ao dominar a língua francesa poderia ser enxergado como um branco.

É por isso que devemos pensar o papel do Negro no caso brasileiro, a partir dos ensinamentos de Abdias do Nascimento (1978) dizendo que o Negro escravizado foi o pilar da história econômica do Brasil, sob o signo do parasitismo imperialista. Isso não foi diferente no campo jurídico, afinal, o sujeito de direito digno de ser assistido pelo Estado era o homem branco colonizador que se afirmava como colonizador diante da condição jurídica de escravo do negro. O domínio do homem branco sobre os corpos negros no processo histórico brasileiro não foi somente um domínio de raça, mas foi também um domínio jurídico.

Portanto, dizer que o direito é branco e de classe não é dizer somente dizer que o direito é branco e de classe, é dizer que o direito nasceu branco e de classe e de raízes eurocêntricas. É de sua natureza dominar e controlar a sociedade, e no caso brasileiro o seu controle e domínio esteve a serviço dos brancos.

Quando Sérgio Buarque de Holanda (2014) registra em Raízes do Brasil que a formação bacharelesca caracteriza a sociedade brasileira, é porque a dominação dos brancos sobre os negros foi uma dominação social, econômica e jurídica. Por isso, que Silvio Almeida (2019) conclui que o sistema colonial imposto no Brasil é um exemplo perfeito de antiliberalismo jurídico.

É nesse sentido que hoje devemos discutir a desigualdade racial no campo jurídico brasileiro. Tomemos como exemplo, o Poder Judiciário a partir da sua composição étnico-racial.

O Poder Judiciário de acordo com a Constituição Federal de 1988 está dividido em Justiça Comum ou Ordinária (Justiça Federal, Estadual) e Justiça Especializada ou Extraordinária (Justiça Trabalhista, Eleitoral e Militar). 

Em 2013 o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) realizou o Censo do Judiciário e o resultado da pesquisa foi de que nos Tribunais Superiores a presença de juízes negros é de 15,6% e juízes brancos é de 84,2%. Na Justiça Federal os negros ocupam somente 13,3% dos cargos de juízes e os brancos ocupam 86,6% dos cargos. Na Justiça Estadual, 10,1% dos magistrados são negros e 84,3% são brancos.

A Justiça do Trabalho é composta por 10,2% de juízes negros e 82,8% de juízes brancos. No âmbito da Justiça Eleitoral temos 22,5% de juízes negros e 78,3% de juízes brancos. Por fim, a Justiça Militar Estadual é composta por 8,9% de juízes negros e 91,1% de juízes brancos.

De acordo com o Censo do Judiciário em 2013 a estrutura jurisdicional brasileira é predominantemente branca. Em virtude desse cenário, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou a resolução 203 de 2015 que dispõe sobre a reserva de vagas aos negros no Poder Judiciário de 20% em concursos públicos para o ingresso na magistratura.

A iniciativa do CNJ em promover ações afirmativas no Judiciário é uma amostra de que é possível construir alternativas jurídicas para combater a desigualdade racial no judiciário, porém não é um fim em sim mesmo. Precisamos de mais discussões sobre o tema para construir caminhos e propostas que possam romper com a estrutura jurisdicional brasileira de maioria branca.

 Este breve sobrevoo na composição étnico-racial no Poder Judiciário indica a força do racismo institucional. Mostrando como o campo jurídico no Brasil foi pautado como um processo de dominação racial dentro do Estado.

Do ponto de vista histórico a estrutura jurídica no Brasil é branca, construída por uma dominação dos brancos sobre os negros, enquanto a estrutura jurídica moderna ocidental europeia foi marcada por uma dominação de classe social.

 Mas do ponto de vista contemporâneo o direito brasileiro continua sendo branco, e hoje também é de classe. Portanto, a passagem do Brasil Imperial para o Brasil contemporâneo herdou a estrutura jurídica branca, potencializada por uma estrutura social competitiva e de classe. 

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrural / Silvio Luiz de Almeida – (Feminismos Plurais / coordenação de Djamila Ribeiro) – São Paulo: Pólen, 2019.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas / Frantz Fanon; tradução de Renato da Silveira. – Salvador: EDUFBA, 2008.

FERNANDES, Florestan. A Integração do Negro na Sociedade de Classes (o legado da “raça branca”), volume 1. São Paulo: Globo, 2008.

HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil / Sérgio Buarque de Holanda. – 27ª ed. – São Paulo: Companhias das Letras, 2014.

MARX, Karl. Manifesto do partido comunista / Karl Marx, Friedrich Engels. – 1.ed. – São Paulo: Expressão Popular, 2008.

http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=sobreStfComposicaoComposicaoPlenariaApresentacao acessado em 26 de julho de 2020.

https://www.cnj.jus.br/pesquisa-do-cnj-quantos-juizes-negros-quantas-mulheres/ acessado em 26/07/2020.

 *Estudante de Sociologia - (UNIFAP) 

  Estudante de Direito – (CEAP)

 

domingo, 27 de setembro de 2020

É MENTIRA - A PEDAGOGA ELIANE SILVA AGREDIDA POR UM PM NÃO TEM FICHA CRIMINAL!





Nos últimos dias, em que o Brasil voltou a se chocar com cenas fortes de mais uma ação policial que não condiz com a conduta de uma segurança pública que queremos, envolvendo a Polícia Militar do Amapá e a Pedagoga negra Eliane Silva.


Como se não bastasse os momentos de terror vividos por ela e seus familiares na noite de 19 de setembro, seguidos de intimidação pela repercussão do caso, estão tentando com fake news ataca-la com a proliferação de acusações infundadas e caluniosas contra a pedagoga que foi vítima da ação brutal da PMAP.


Acusam-na de associação com o tráfico e de conduta duvidosa. Estão tentando destruir a imagem de uma mulher negra que, como muitos brasileiros, sempre lutou para ser alguém na vida. Ela é uma trabalhadora honesta SEM FICHA CRIMINAL. Não podemos aceitar que sua dignidade seja atacada dessa forma. A intenção de quem cria e espalha mentiras contra Eliane é tentar justificar a violência RACISTA e desproporcional que ela sofreu.


Por não aceitarmos isso, viemos a público mostrar as certidões que provam que Eliane Silva não deve nada à justiça e mesmo se devesse é inadmissível tamanha covardia com que foi e vem sendo agredida.


Aqueles que espalharam essas informações caluniosas são criminosos e serão investigados e punidos judicialmente.




RACISMO É CRIME! CALUNIAR ALGUÉM É CRIME!


Denunciem!

# NÃO FOI UM CASO ISOLADO #JUSTIÇA POR ELIANE #RACISMO É CRIME 

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

CARTA À SOCIEDADE AMAPAENSE

 

CARTA À SOCIEDADE AMAPAENSE


Foto: Alinne Brito 

...a todos nós que amamos a negritude, que ousamos criar no dia a dia de nossas vidas espaços de reconciliação e perdão onde deixamos vergonhas, medos e mágoas do passado, e nos seguramos uns nos outros, bem próximos. Somente o ato e a prática de amar a negritude nos permitirá ir além e abraçar o mundo sem a amargura destrutiva e a raiva coletiva corrente. Abraçar uns aos outros apesar das diferenças, além do conflito, em meio à mudança, é um ato de resistência - Bell Hooks

O Coletivo Utopia Negra Amapaense vem a público repudiar toda e qualquer forma de violência praticada contra a população negra, em especial contra os grupos em vulnerabilidade social, como mulheres, LGBTQIA+, moradores das pontes e periferias, quilombolas, ribeirinhos, indígenas.

Nos últimos dias, temos visto o crescimento de comentários nas mídias sociais contendo notícias falsas (fake news), que estão sendo utilizadas com o intuito de descredibilizar, atacar e ridicularizar a luta contra o racismo social, institucional e a violência policial. Tais notícias estão sendo espalhadas por perfis mal intencionados, aparelhados para espalhar mensagens de ódio.

Queremos ressaltar que o caso de violência policial que causou a mobilização dos últimos dias ganhou repercussão nacional e internacional, sendo ainda mais grave por ter sido uma violência praticada por um funcionário público, pago com os nossos impostos. Foi uma agressão covarde contra uma mulher negra, Mãe e cidadã amapaense, que é trabalhadora e paga seus impostos.

Estamos aqui em defesa do direito à vida, direito à liberdade, direito de ir e vir, direito à segurança pública. Defendemos a legalidade, queremos que se façam cumprir as leis. Seja por quem for. As forças policiais não têm o direito de nos matar, de nos humilhar, de nos torturar, de nos marcar como alvos fáceis. Sua missão é servir e proteger, buscar a paz social. Cobramos que as ações de violência policial sejam devidamente apuradas pela corporação e pelos órgãos da justiça amapaense. Cobramos também que seja garantida à vítima e à sua família a proteção necessária contra ameaças vindas das redes sociais e das ruas.

Sociedade amapaense, nós não somos contra a polícia militar e aos servidores públicos que prestam serviço a essa instituição. Uma das reclamações que observamos é que os agentes de segurança pública e da polícia militar precisam de melhores condições de trabalho, precisam de apoio psicológico, o trabalho desses agentes é sobre estresse, logo, é preciso que todas (os) agentes tenham esse acompanhamento semanal, mensal e anual de apoio psicológico, que os nossos funcionários públicos de segurança pública tenham melhores condições de trabalho, e possam oferecer uma melhor qualidade no serviço, assim como, poder cumprir com os compromissos dessas instituições que está previsto na constituição. Os funcionários públicos da segurança pública não são os nossos inimigos – o nosso inimigo é o racismo estrutural.  Não podemos confundir o debate. Precisamos focar no que é necessário e urgente. As nossas propostas para melhorar a vida de todas as pessoas são: É necessário um processo de reestruturação de toda a segurança pública do Estado. É necessário que a polícia militar reconheça que o seu modo operacional está imerso no racismo estrutural. A todas e todos amapaenses dessa terra, o racismo estrutural é uma violência que acaba por hierarquizar as pessoas na ideia de raça, e o racismo como uma tecnologia de dominação está imerso no nosso imaginário, ele norteai a política de segurança pública, o Estado e a mídia local. Logo, reconhecer que a corporação da polícia militar é influenciada pelo racismo estrutural significa assumir uma responsabilidade com a população negra que somos a maioria no Estado do Amapá. E assumir essa responsabilidade requer coragem, e essa coragem exige que façamos uma reunião com o comando militar, secretaria de estado da justiça e segurança pública do amapá e os (as) presidentes da Assembleia Legislativa do Estado do Amapá.

Não iremos aceitar as ameaças que os integrantes da Utopia Negra vêm sofrendo nos últimos dias, que fique escuro iremos tomar todas as medidas jurídicas contra as pessoas que tem nos caluniados, ameaçados e o racismo nos comentários nas nossas redes sociais. Lembrando que racismo é crime. E não iremos baixar a cabeça, pois a nossa luta é justa e lutamos pelos nossos. Pedimos que todos os coletivos e organizações que assinaram a carta de repúdio que compartilhe essa carta a sociedade amapaense.

Amar a negritude como resistência política transforma nossas formas de ver e ser e, portanto, cria as condições necessárias para que nos movamos contra as forças de dominação e morte que tomam as vidas negras – Bell Hooks

 

Utopia Negra - 24 de setembro de 2020

 


quarta-feira, 23 de setembro de 2020

NOTA DE AGRADECIMENTO E DE CONTINUAÇÃO DO CHAMADO PARA A LUTA ANTIRRACISTA NO AMAPÁ

 

NOTA DE AGRADECIMENTO E DE CONTINUAÇÃO DO CHAMADO PARA A LUTA ANTIRRACISTA NO AMAPÁ 




Nós, Utopia Negra Amapaense, vimos ontem a realização de uma utopia nossa, uma utopia que sempre esteve presente em nós enquanto coletivo, assim como de forma individual em cada componente do nosso grupo, em cada trajetória de todes que já vivenciamos a violência racista da polícia e do estado.

Queremos aqui agradecer a todes que compuseram esse processo de construção e mobilização do ato de ontem, em nome do coletivo Ifé Dudu que junto da gente iniciou esse processo, saudamos a todes. Obrigada a cada coletivo, aos movimentos negros, aos movimentos sociais e culturais que foram essenciais para mobilizarem e termos o resultado que tivemos ontem. Agradecemos a todes que compareceram ontem, nossos irmãos de luta, a cada pessoa que enxergou que a luta antirracista é necessária para uma sociedade mais justa, que essa luta é de todes e é preciso se colocar no front. 


Dessa forma, novamente convocamos todos os coletivos que assinaram a carta de repudio a somar na luta, essa é uma luta contínua, logo, nos próximos dias e meses precisamos fazer um debate sério e público sobre o processo de segurança pública no Estado do Amapá, precisamos pressionar as instituições a nos ouvirem, assim como, a polícia do Estado precisa passar por um processo de reestruturação sobre o seu modo operacional, a policia civil e o Estado precisam colocar como prioridade discussões que envolva o debate sobre o racismo estrutural e nos colocamos a disposição diante das instituições e da sociedade amapaense para fazer esse debate.

Fechamos a Rua Jovino Dinoá por 3 horas. Nessa disputa de narrativas nunca tivemos medo, os inúmeros relatos de ontem são a prova, NÃO É UM CASO ISOLADO e não vão deslegitimar nossa luta! É ancestral e estamos retomando. Nós por nós! Todo poder ao povo preto amapaense!


#NãoFoiUmCasoIsolado e #VidasNegrasImportam

#racismoécrime #racismonão