Rodrigo e sua mãe Soraya, foto do arquivo pessoal
Por - Rayane Penha - Macapá
Na cultura do
povo Bancongo que vive na costa atlântica do continente africano existe um
ditado popular que fala: "a anterioridade não é um pretérito que se
encerra em algo que passou e se acabou, a anterioridade é algo que se faz
presente". Refletindo sobre o momento presente da sociedade brasileira,
principalmente em um contexto político tão aflorado em nossos cotidianos me
veio a necessidade de olhar para essa anterioridade do nosso país, um olhar
sobre as raízes desta história que parecem muitas, mas no fundo é uma só, a
história do Brasil, só que hoje, contada por brasileiros, nos legitimando,
nascidos desta terra. O pensamento sobre nossas identidades raciais e culturais
sempre veio acompanhado da palavra “diversidade”, mas a falta de clareza sobre
as singularidades dessas identidades nos levou a uma sociedade extremamente
ignorante sobre sua própria identidade, o que nos leva a um país racista, cheio
de desigualdades sociais e econômicas em que vivemos na atualidade.
Elane
Albuquerque, 49 anos, mestre em educação e autora do livro “Vejo um museu de grandes novidades, o tempo não para…
Sociopoetizando o museu e musealizando a vida”, faz um registro histórico e
cultural do estado do Amapá. Ela diz que ao reconhecer uma ancestralidade a
gente perpassa por esses processos de desconstrução de tradições racistas, de
subalternidade e invisibilidade de povos e culturas. “No Brasil a questão da
ancestralidade se constrói a partir da história de um país colonizado e
hierarquizado socialmente”.
Uma pesquisa realizada
pelo Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG) fez uma ampla análise genética da ancestralidade brasileira e traz a
tona alguns traços culturais, como por exemplo, casamentos entre povos das
mesmas culturas que demonstram que a miscigenação no Brasil é bem menor do que
a que é colocada pelo mito da democracia racial do nosso país. Como em Salvador
que apresenta uma população de maior origem africana com 50,8%, seguida da
europeia com 42,9% e por último ameríndia com 6,4%. São dados que se invertem
quando falamos da região Norte do país, o que demonstra que para além dos
fenótipos que carregamos, há diversas formas de culturas e olhares para a
sociedade, ao olharmos para essas ancestralidades podemos descobrir novas
formas além dessas que nos são apresentadas.
“Só agora que
comecei a escrever a minha aldeia, a minha aldeia vive perto de mim, a minha
aldeia está dentro de mim. Fecho os olhos, tampo os ouvidos e escuto a minha
aldeia. A minha aldeia não sai de mim, ela é a minha cicatriz tatuada.”, diz
Maurinete Lima em seu livro Sinhá Rosa. A Poetisa recifense que lançou seu
primeiro livro aos 74 anos, faleceu em 2018. Seu livro é uma conexão com o
ancestral através da poesia, uma perspectiva histórica sobre o Brasil ao mesmo
atualizada, anticolonial e futurista.
Faz alguns bons
anos que eu venho refletindo sobre minha identidade racial, ao longo desses
anos pareceu que eu andava fazendo escavações cada vez mais profundas, sem
chegar a uma resposta exata da pergunta “quem eu era?”
Na casa dos meus avós no Vila Nova, comunidade
onde cresci
Crescendo em um
povoado de ribeirinhos e garimpeiros onde os traços caboclos e negros eram
comuns, a única estranheza era quando brancos que trabalhavam na mineradora
chegavam por lá, eles faziam o mesmo serviço do meu pai, mas meu pai negro da
pele escura os chamava de doutor e eles brancos chamavam meu pai de “peão”.
Aquelas cenas
repetidas tantas vezes me causavam um nó no estômago, não porque eu sabia o que
era racismo, mas porque eu sabia que meu pai era um homem importante, não só
para mim que era sua filha e o via como herói, mas para todos da comunidade que
o respeitavam como uma liderança local. Ver a submissão dele diante dos brancos
era doído, sua voz pra dentro, os olhares baixos e a concordância de tudo; logo
ele tão questionador... De gritos para ser escutado, de olhares firmes, logo
ele, ali com os brancos de cabeça baixa.
Na adolescência,
os confrontos sobre essas relações com o meu pai se tornaram intensos. Eu, “estudada”,
como ele dizia, não suportava suas falas extremamente racistas, gritava para
ele se olhar no espelho, olhar seus cabelos crespos, o seu nariz, a sua pele,
ele era preto! Então ele me rebatia dizendo:
“eu sou preto, mas meu sangue é branco”. Eu, estudante de escola pública
a vida inteira tive a dádiva de ter professores que não apenas ensinavam, mas
educavam pra vida. Através deles que aprendi a refletir sobre mim e sobre a
história do Brasil e aprender com eles estava para extensão das salas de aula.
Eles enquanto pessoas me ensinavam que o Brasil não começou em 1500, que os
negros não eram escravos, mas foram escravizados, que o dia do índio, apesar da
escola insistir em folclorizar, não era folclore, os índigenas existem e
resistem, hoje e desde sempre.
Eu voltava para casa, cheia de
questionamentos, confrontava meu pai e minha mãe pelas atitudes e palavras
racistas, misóginas, homofóbicas. Não conseguia entender como duas pessoas tão
oprimidas tinham um discurso tão opressor. Em minha mãe eu até compreendia, ela
cabocla da pele clara, se agarrou ao tom de sua pele para negar os traços
indígenas que carrega. Até hoje se eu falar que ela tem traços indígenas ela se
benze e diz “cruz credo”. Mas eles estão lá nos seus olhos, no formato do
rosto, em seus cabelos herdados de meu avô, homem da floresta e repassados para
mim. Recentemente, aos 23 anos, em uma academia de São Paulo eu vi a instrutora
passar a mão no meu rosto admirada porque nunca tinha visto uma pessoa
indígena, mesmo eu dizendo para ela que eu não era indígena, que eu vinha da
amazônia, mas não era indígena. Disse isso não por uma negação de identidade,
mas por entender que hoje eu apenas carrego características físicas daqueles
que antes de mim tiveram essa vivência, que para mim esse lugar de afirmação é
daqueles que hoje vivem ser indígena e mais do que isso, por desconhecer esse
outro lado da minha história. Esse episódio era um ponto de partida para chegar
em raízes ainda mais profundas sobre quem eu sou. Eu que me afirmo hoje mulher negra percebi
que essa afirmação vinha muito por conhecer a negritude histórica e cultural
que habita em mim, pelo conforto de conhecer a história da minha família
paterna, mas a miscigenação presente no meus traços físicos grita pela
necessidade de aprofundar ainda mais minhas raízes.
Nessa busca de
mim acabei encontrando muitos outros, dois deles grandes amigos que estavam
passando por processos parecidos, escavando suas histórias e vendo o reflexo
delas em suas atualidades. Samara Alencar, produtora executiva de 30 anos,
oriunda do município de Afuá no interior do Pará e Rodrigo Aquiles,
publicitário de 33 anos, nascido em Salvador, Bahia, e amapaense há mais de 20
anos.
Os dois
vivenciando conexões com suas ancestralidades em uma busca não só de identidade
mas por algo que Samara chama de “tomada de consciência, tomar consciência do
quanto que a gente ta voltado pra essa superficialidade, pra essa negação, é se
empoderar enquanto ser histórico, enquanto ser político e essa é a minha
história, esse é o meu lugar”.
Samara quando criança em Afuá, foto do arquivo
pessoal.
“Essa percepção de que são onde estão minhas
raízes, então eu negava isso e eu negava a mim mesma a minha própria história”
É em Afuá, a terra rodeada pelas águas doces que banham as ilhas do Marajó que
a busca de Samara hoje é voltada para preservar as memórias de sua avó e por
descobrir mais sobre a identidade de seus bisavós e consequentemente mais sobre
a sua. No seu esforço em recobrar as memórias da avó, o que me chamava atenção
no que ela me contava era o fato dela sempre se referir às pessoas pelo grau de
parentesco e nunca pelos nomes, algo que depois ela confessou ser por
desconhecer os nomes de seus ancestrais. Algo tão corriqueiro como nossos nomes
e desconhecemos tão profundamente os daqueles que fazem parte de nós. Mesmo que
seja algo presente em nossos cotidianos, como quando ela me conta que sua avó
materna sempre teve o costume de contar histórias sobre a família: “minha vó, a
gente senta pra tomar um cafézinho e ela já começa a contar e ela tem uma visão
muito lúcida ainda, muito positiva da vida”.
Ela diz que nunca tinha se interessado profundamente sobre as histórias,
até recentemente “Eu sinto que to mais preparada para receber as coisas, tanto
é que quando ela conta aí eu faço perguntas. Aí ela vai explorando camadas mais
profundas disso”.
Através de
conexões com grupos de mulheres ela conta que foi onde surgiu de forma mais
concreta o interesse por registrar as memórias da família e de conhecer melhor
a história que também é dela.
No grupo, ela
percebia as relações conflituosas que relatavam principalmente sobre os
vínculos com os femininos nas famílias. Percebendo que nela haviam feridas
emocionais para além da relação consciente que estabelecia com a família, ela
trouxe essas experiências a tona e decidiu que precisava olhar para isso,
“porque você tá sofrendo internamente e inconscientemente. Pra eu me entender e
fazer as pazes com a minha história eu preciso entender as histórias das minhas
ancestrais, entender que as mulheres que vieram antes de mim elas sofreram
muito e tem algumas que estão vivas e estão sofrendo”. Samara coloca que mesmo
com todo um debate sobre o feminismo, ele não alcança as camadas mais populares
e diz que se sente responsável em levar esse conforto em relação ao feminino
para as mulheres de sua família. “É processo de buscar estar sempre consciente
de que os conflitos que eu vivo são parece repetições de processos
inconscientes da minha estrutura familiar principalmente feminina”.
Em um ato de
teimosia em não repetir a sina das mulheres de sua família, Samara reage contra
o próprio ego, que diz ter sido o seu maior desafio na sua busca. “Na minha
história, na história de vida da minha avó tem muito disso esse caminho de
expiação até chegar o momento que acontece uma coisa milagrosa”. A história de
Samara e das mulheres de sua família é o milagre da escolha diária de preservar
essas memórias e a partir delas construir novas narrativas.
O baiano mais amapaense que conheço!
Soraya gravida do Aquiles, foto do arquivo pessoal
“Eu tenho muitas
lembranças dessa fase, algumas pessoas dizem que é impossível, mas eu lembro de
muitas coisas”. Aquiles me conta sobre sua memória mais marcante da infância.
Diz que foi na vinda de Salvador para o Amapá, que devia ter 3 ou 4 anos quando ele e a mãe Soraya fizeram
essa travessia de ônibus. Lembra de cantar músicas sertanejas dentro do ônibus,
ele sorri ao lembrar que as pessoas perguntavam por ele “os passageiros já
sabiam que era eu que cantava e perguntavam onde é que tava o menino cantor,
cantava Zezé de Camargo, Leandro e Leonardo”. Talento refletido nos dias
atuais, Aquiles além de publicitário também é músico.
Sua retomada era
ainda mais literal, depois de mais de 20 anos no Amapá e com uma história
familiar cheia de lacunas, ele estava voltando pra Salvador para reencontrar
seu avô Cândido “Meu avô não gosta de ficar parado em um lugar só, minha mãe
fala isso…” talvez uma herança familiar
para Aquiles, que carrega em si uma tranquilidade e fala pausada, mas olhares
profundos que denunciam uma inquietude com o mundo. Através dessa inquietude e
de suas reflexões sobre sua identidade ele partiu para um terreno que faz parte
de si, mas que havia se tornado desconhecido. A última vez que ele esteve na
Bahia tinha 9 anos. Ao virem para o Amapá ele disse
Foto do arquivo pessoal, Rodrigo em Salvador em
frente a casa da família
para a mãe que
queria morrer na Bahia. “Eu pego muito esse momento como referência pra essa
minha volta pra lá, não sei como é que vai ser, mas acho que é bem forte ainda
essa minha ligação”. Na época a ligação familiar que tinha era com a família
adotiva da mãe, agora o reencontro não é só com os laços familiares de sangue,
mas com todas as relações socioculturais de um lugar do qual ele também é
pertencente.
O pertencimento é
algo que Aquiles confessa não ter, nas relações familiares e no lugar de
“estrangeiro” que por muito tempo se sentiu ao estar no Amapá e como agora se
sente ao voltar a Salvador. “Eu vou chegar lá como um estrangeiro, como um
amapaense, isso é estranho, não tem como eu chegar lá e as pessoas me verem
como um baiano”. Mas a retomada se apresenta como necessária em sua vida, a
falta de pertencimento nas relações familiares e aos lugares desperta a lacuna
da identidade, a sua busca é também por essa conexão, que ele diz que nunca foi
feita por sua família, mas que hoje sente que é seu dever fazer “É algo que
minha mãe nunca teve também, talvez caiba a mim procurar um pouco mais sobre a
nossa história”. Aquiles coloca a necessidade de sua retomada como a
experiência que no fundo lhe trará fortalecimentos.
Da firmeza das
terras do sertão para a fluidez do amazonas, a mãe de Aquiles construiu nas
terras tucujus novas raízes. Quando eu pergunto sobre sua mãe, é visível que o
menino não pertencente, pertence sim a um lugar, um lugar seguro que é o
coração da mãe, Soraya. Ele respira fundo e com os olhos marejados me responde:
“Minha mãe é sensacional!”, conta que por muito tempo foram só os dois. “Ela
fez tudo pra mim”, ele reconhece, mas diz que parece que nunca vai ser
suficiente, que tudo que quer é vê-la feliz, depois da infância e da
adolescência difícil que ela teve, encontrou aqui o lugar de superação,
emprego, estudos, amores e uma nova filha, pro Aquiles chamar de irmã. “Ela
nunca desistiu”, diz.
Ele apresenta a
busca por sua ancestralidade como um ato político, que é para si e por sua
família. Algo que lhe foi negado e até mesmo distorcido como a história do
nosso país, a consciência colonizada que nos acompanha até os dias de hoje, o
apreço pelo externo, a não valorização daquilo que vem de nós, romper com isso
é despertar o inconsciente das nossas raízes. “A gente termina se desvinculando
de uma identidade que é imposta, para aceitar sua própria identidade, sua
própria individualidade”. Para Aquiles, só o fato de procurar entender de onde
ele veio já o fortalece por saber quem veio antes dele: “algo que é como se a
pessoa fosse bem maior do que ela é” . Ele me conta que nas conversas com mãe,
os dois sempre refletem sobre a energia da avó materna, diz que sente como se
algo sempre o tivesse guiando, colocando no caminho certo. “A impressão grande
que a gente teve é que realmente tem alguma coisa desse lado da família, tem
algo por alí que vem moldando meu presente hoje. Talvez seja isso que eu esteja
tentando descobrir também”.
Thayse Medeiros
de 32 anos é psicóloga e diz que a ancestralidade está diretamente ligada a uma
ideia de inconsciente coletivo. “É o que anterior ao que é meu já é existente,
mas é meu também”. Segundo Thayse, a psicologia analítica, que é uma teoria
da psicologia, visa o ser humano como um
todo, em suas questões biológicas, emocionais, físicas, espirituais,
geográficas, em todo o seu contexto geral, originada a partir das idéias do
psiquiatra suíço Carl Gustav Jung. Apesar da psicologia analítica se mostrar
abrangente relacionado às questões humanas, ela não é tão bem aceita pelos
profissionais da área e ainda bastante desconhecida pelos leigos. Thayse coloca
que muitos profissionais não aceitam por negarem a existência do inconsciente.
Ela diz que a psicologia surge como um estudo da mente e da alma e que negar o
inconsciente é negar a alma, logo se nega também a psicologia. Para ela, o
trabalho com o outro se dá a partir da crença no seu inconsciente, que não tem
como trabalhar com o ser humano só a partir do que ele é agora, porque isso
seria trabalhar o momento e não o ser humano. “A psicologia analítica busca a
individuação, o encontro com o eu mesmo, com o meu self. É sair do ego, do
consciente que a gente chama, pra parte inconsciente, pra eu buscar o meu eu
interior, o meu subjetivo”.
A negação do
inconsciente que vive em nós me assusta, é como uma escolha em continuar
dormente, diante de uma história ainda em retalhos que é o Brasil, diante da
negação de uma identidade nossa. Nós viemos, nós somos todos aqueles que hoje
são colocados às margens. A estrutura do processo de colonização faz com que
hoje a gente negue que somos pretos, indígenas, parentes de povos que foram
escravizados para construir este país, todos querem ser descendente de
europeus, o lado “bonito” da história e como em uma ilha de edição, eles editam
a memória conforme o que acham que a sociedade vai achar melhor.