O
DIREITO COMO INSTRUMENTO DE DOMINAÇÃO RACIAL NO BRASIL
Por - Nilson
Gomes de Oliveira
O ano de 2020 marcado
pela pandemia da Covid-19 tem provocado reflexões, discussões, debates e
intervenções de intelectuais, estudantes, movimentos sociais e instituições em
geral.
Esse contexto é
fundamental, apesar de muita dor e sofrimento em decorrência das mortes
provocadas pela covid-19. A partir do atual movimento histórico mundial e
nacional, temos a oportunidade de evidenciar as bases racistas do sistema
social proposto pela sociedade ocidental branca.
No primeiro semestre de
2020 a partir da morte de George Floyd por um policial branco nos Estados
Unidos sob a pandemia do coronavírus emergiu uma onda antirracista sistemática
de questionamentos sobre as relações raciais no mundo que impactaram o debate
público no Brasil.
Com a emergência de um
debate antirracista no Brasil, é preciso falar também sobre o Direito como um
campo que contribuiu para a dominação social, política e econômica dos brancos
sobre os negros.
Para iniciar essa
discussão, partimos da seguinte pergunta: o direito é branco e de classe? Num
primeiro momento essa pergunta parece simples, porém implica em uma reposta
complexa.
A história do direito no
Brasil é construído pelo sistema colonial e escravocrata que dividia corpos
negros dos corpos brancos de um ponto de vista racial e jurídico, enquanto o
direito na Europa do século XVII, XVIII e XIX se desenvolvia sob a luz dos
direitos civis e políticos com um viés de classe.
O direito é de base
eurocêntrica e de classe, em que o sujeito de direitos foi a construção do
projeto de homem iluminista e branco, que propunha as relações sociais e
econômicas reguladas pelo mundo jurídico, garantindo a vida, a liberdade e a
dignidade. Porém, o direito ao chegar ao Brasil colônia, em especial com a
vinda da família Real em 1808, e sobretudo no Brasil Imperial (1822-1889), o Direito
operou sob um contexto em que classe social não era a ordem do dia e que a base
de dominação econômica era dominação europeia do homem civilizado sobre os
povos selvagens do Novo Mundo, que não tinham nem Rei, nem Lei e nem Estado do
ponto de vista europeu.
Nesse bojo, a formação
jurídica era um marcador social e de raça, em decorrência de uma sociedade
marcada pela autoridade do senhor da casa grande. É de conhecimento geral que o
Brasil colonial e imperial passou por um processo político e social de formação
econômica excludente e racista, enquanto a Europa se agitava com eventos
políticos e sociais visando a construção ontológica do homem branco europeu,
sendo o iluminismo o fenômeno mais notório.
Silvio Almeida (2019)
afirma que o iluminismo foi o fundamento filosófico das grandes revoluções
liberais que em nome da liberdade visava abolir a sociedade absolutista por uma
moderna sociedade burguesa.
Karl Marx em 1848 no
Manifesto do Partido Comunista já lançava mão sobre a “descoberta” do Novo
Mundo como uma maneira de entender as grandes navegações europeias na África e
na América como um campo de ação das mercadorias. Ele esqueceu de acrescentar
que o campo de ação das mercadorias era produto direto da exploração dos corpos
negros, em que somente a civilização branca usufruía dos avanços jurídicos e
econômicos da sociedade capitalista que substituiu a sociedade feudal.
Silvio Almeida (2019) diz que as revoluções
inglesas, americana e a francesa reorganizaram o mundo. Com essa reorganização,
o sistema colonial sustentou as grandes metrópoles europeias com a escravidão
dos povos negros. Por isso, o projeto liberal-iluminista de homem e sociedade
não tornava todos os homens iguais.
Almeida (2019) ao afirmar
que o projeto-iluminista não propunha igualdade para todos os povos,
exemplifica a Revolução Haitiana em 1791 como o momento em que iluminismo
europeu foi posto de frente com o seu princípio de liberdade e não reconheceu a
liberdade para um provo que não fosse branco. Isso é tão forte, que nos cursos
de Direito ao estudar Direitos Humanos, a Declaração de Direitos do Homem e do
Cidadão na Revolução Francesa de 1789 é o marco histórico do ensino jurídico,
alçando tal declaração como símbolo de liberdade. Isto significa que o direito
moderno é resultado da produção intelectual do homem branco.
Não é por acaso que
Frantz Fanon (2008) em Pele Negra, Máscaras Brancas reivindica a história do
negro antilhano na sociedade francesa do século XX, como uma história de
inferioridade fruto de processo econômico e psicológico em que o negro ao
dominar a língua francesa poderia ser enxergado como um branco.
É por isso que devemos
pensar o papel do Negro no caso brasileiro, a partir dos ensinamentos de Abdias
do Nascimento (1978) dizendo que o Negro escravizado foi o pilar da história
econômica do Brasil, sob o signo do parasitismo imperialista. Isso não foi
diferente no campo jurídico, afinal, o sujeito de direito digno de ser
assistido pelo Estado era o homem branco colonizador que se afirmava como
colonizador diante da condição jurídica de escravo do negro. O domínio do homem
branco sobre os corpos negros no processo histórico brasileiro não foi somente
um domínio de raça, mas foi também um domínio jurídico.
Portanto, dizer que o
direito é branco e de classe não é dizer somente dizer que o direito é branco e
de classe, é dizer que o direito nasceu branco e de classe e de raízes
eurocêntricas. É de sua natureza dominar e controlar a sociedade, e no caso
brasileiro o seu controle e domínio esteve a serviço dos brancos.
Quando Sérgio Buarque de
Holanda (2014) registra em Raízes do Brasil que a formação bacharelesca
caracteriza a sociedade brasileira, é porque a dominação dos brancos sobre os
negros foi uma dominação social, econômica e jurídica. Por isso, que Silvio
Almeida (2019) conclui que o sistema colonial imposto no Brasil é um exemplo
perfeito de antiliberalismo jurídico.
É nesse sentido que hoje
devemos discutir a desigualdade racial no campo jurídico brasileiro. Tomemos
como exemplo, o Poder Judiciário a partir da sua composição étnico-racial.
O Poder Judiciário de
acordo com a Constituição Federal de 1988 está dividido em Justiça Comum ou
Ordinária (Justiça Federal, Estadual) e Justiça Especializada ou Extraordinária
(Justiça Trabalhista, Eleitoral e Militar).
Em 2013 o Conselho
Nacional de Justiça (CNJ) realizou o Censo do Judiciário e o resultado da
pesquisa foi de que nos Tribunais Superiores a presença de juízes negros é de
15,6% e juízes brancos é de 84,2%. Na Justiça Federal os negros ocupam somente
13,3% dos cargos de juízes e os brancos ocupam 86,6% dos cargos. Na Justiça
Estadual, 10,1% dos magistrados são negros e 84,3% são brancos.
A Justiça do Trabalho é
composta por 10,2% de juízes negros e 82,8% de juízes brancos. No âmbito da
Justiça Eleitoral temos 22,5% de juízes negros e 78,3% de juízes brancos. Por
fim, a Justiça Militar Estadual é composta por 8,9% de juízes negros e 91,1% de
juízes brancos.
De acordo com o Censo do
Judiciário em 2013 a estrutura jurisdicional brasileira é predominantemente
branca. Em virtude desse cenário, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou a
resolução 203 de 2015 que dispõe sobre a reserva de vagas aos negros no Poder
Judiciário de 20% em concursos públicos para o ingresso na magistratura.
A iniciativa do CNJ em
promover ações afirmativas no Judiciário é uma amostra de que é possível
construir alternativas jurídicas para combater a desigualdade racial no
judiciário, porém não é um fim em sim mesmo. Precisamos de mais discussões
sobre o tema para construir caminhos e propostas que possam romper com a
estrutura jurisdicional brasileira de maioria branca.
Este breve sobrevoo na composição
étnico-racial no Poder Judiciário indica a força do racismo institucional.
Mostrando como o campo jurídico no Brasil foi pautado como um processo de
dominação racial dentro do Estado.
Do ponto de vista
histórico a estrutura jurídica no Brasil é branca, construída por uma dominação
dos brancos sobre os negros, enquanto a estrutura jurídica moderna ocidental
europeia foi marcada por uma dominação de classe social.
Mas do ponto de vista contemporâneo o direito
brasileiro continua sendo branco, e hoje também é de classe. Portanto, a
passagem do Brasil Imperial para o Brasil contemporâneo herdou a estrutura
jurídica branca, potencializada por uma estrutura social competitiva e de
classe.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo
estrural / Silvio Luiz de Almeida – (Feminismos Plurais / coordenação de
Djamila Ribeiro) – São Paulo: Pólen, 2019.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras
brancas / Frantz Fanon; tradução de Renato da Silveira. – Salvador: EDUFBA,
2008.
FERNANDES, Florestan. A Integração do
Negro na Sociedade de Classes (o legado da “raça branca”), volume 1. São Paulo:
Globo, 2008.
HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do
Brasil / Sérgio Buarque de Holanda. – 27ª ed. – São Paulo: Companhias das
Letras, 2014.
MARX, Karl. Manifesto do partido
comunista / Karl Marx, Friedrich Engels. – 1.ed. – São Paulo: Expressão
Popular, 2008.
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=sobreStfComposicaoComposicaoPlenariaApresentacao
acessado em 26 de julho de 2020.
https://www.cnj.jus.br/pesquisa-do-cnj-quantos-juizes-negros-quantas-mulheres/
acessado em 26/07/2020.
Estudante de Direito – (CEAP)
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