DIREITO E
VIOLÊNCIA: O RACISMO E O PRIVILÉGIO POLICIAL
Foto: Taymaz Valley CC
Nilson
Gomes de Oliveira
No dia 18 de setembro de
2020 em Macapá, acompanhamos um caso “isolado” de violência policial praticado
contra Eliane Silva, formada em Pedagogia, professora e mulher negra,
suscitando a seguinte discussão: sendo o racismo estrutural elemento central
para discutir as razões da violência policial sofrida por Eliane Silva, de que
modo podemos enxergar os privilégios do policial militar no direito brasileiro?
Antes de iniciar a
presente discussão propriamente dita, cabe o seguinte esclarecimento: o direito
na sociedade capitalista assume um caráter técnico, que afasta de suas análises
questões sociais, políticas e econômicas, destinando o ideal de justiça para
normas e legislações escritas. Por isso, o que entendemos por privilégio
atravessa avaliações práticas, ou seja, não é questão meramente conceitual, mas
trata-se de como podemos ver na realidade social a técnica jurídica a partir de
critérios objetivos presumidos como verdade pelo Estado.
Tomemos os crimes
militares e algumas questões no direito brasileiro:
Direito nem sempre é direito
Ao estudarmos a Lei de Crimes Hediondos
(Lei nº 8.072/90) percebe-se que não foi atribuída aos crimes militares
natureza hedionda. Logo, o latrocínio, extorsão qualificada pela morte,
extorsão mediante sequestro, crime militar de genocídio e estupro não passam
pela vigilância penal dos crimes hediondos, sendo estes tipificados pelo Código
Penal Militar.
Exemplificando, pensemos
num policial militar, no interior de uma determinada organização militar
constrangendo uma mulher (civil) à conjunção carnal, mediante violência ou
grave ameaça, configura-se estupro militar, com pena de 3 (três) a 8 (oitos)
anos, conforme o CPM, enquanto o estupro previsto no Código Penal a pena é de 6
(seis) a 10 (dez) anos, sendo também um crime de natureza hedionda.
Diante disso, devemos
reconhecer a disparidade de tratamento do crime militar e do crime comum. Em
outras palavras, privilégio com respaldo legal, no qual, o Estado entende que o
militar deve ser responsabilizado com sanção penal por legislação especial, com
Justiça Especializada. Alguns podem sustentar que o Código Penal Militar não
institui privilégios, não revelando inconstitucionalidade, mas não podem negar
o tratamento diferenciado que os militares gozam no direito brasileiro.
O art. 125, parágrafo 4º da Constituição
Federal de 1988 diz que compete à Justiça Militar estadual processar e julgar
os militares dos Estados, nos crimes militares, ações judiciais contra atos
disciplinares militares, cabendo ao tribunal militar decidir sobre a perda do
posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças. Por isso, a competência
da Justiça Militar Estadual está diretamente ligada ao conceito de crime
militar (art. 9º, CPM). No mais, a situação que podemos ter um policial militar
sendo julgado na justiça comum estadual é praticando crime doloso contra vida
de um civil, sendo competência do Tribunal do Júri (art. 125, parágrafo 4°,
CF-88).
Nos casos em que o
plenário do Tribunal do Júri desconsiderar o dolo, e considerar o crime culposo
contra a vida, não haverá sanção penal na justiça comum estadual. Diante disso,
o processo seria redistribuído para a Justiça Militar Estadual, pois seria de
interesse da Justiça Militar processar e julgar este caso.
A violência contra negros e negras no
Amapá
A violência policial
sofrida por Eliane Silva também nos leva a pensar sobre que modelo de segurança
pública pretendemos construir nas próximas décadas. O Atlas da Violência em
2018 levantou o seguinte dado: no Amapá a morte de não negros chega a 7,8%, em
um universo de 100 mil habitantes. Isso quer dizer que no Amapá existe um
caráter racial na morte, possivelmente ligado a um caráter de classe. Diante
disso, a principal conclusão do Atlas da Violência é que uma das principais
facetas da desigualdade racial no Brasil é a forte concentração de homicídios
na população negra. Observemos o seguinte apontamento:
Já
o Anuário Brasileiro de Segurança Pública analisou 5.896 boletins de ocorrência
de mortes decorrentes de intervenções policiais entre 2015 e 2016, o que
representa 78% do universo das mortes no período, e, ao descontar as vítimas
cuja informação de raça/cor não estava disponível, identificou que 76, 2% das
vítimas de atuação da polícia são negras (ATLAS, 2018).
Se os números apontados
sobre a segurança pública falassem diriam que devemos considerar os índices
sociais sobre a violência contra negros e negras, porém como política de
segurança pública não se trata de somar 2 + 2, mas sim de disputar o Estado e
sobre como este gerencia a política de segurança. Devemos colocar em nossa
agenda cotidiana o debate sobre os serviços públicos prestados por pessoas de
direito público e seus agentes, para que estes respondam pelos danos causados a
terceiros, pressionando-os para que venham a considerar o racismo estrutural em
suas ações.
O Comando-Geral da
Polícia Militar em cada início de semestre programa cursos, palestras e
similares sobre direitos humanos e relações públicas, para toda corporação
militar, porém os números da violência policial não corroboram com os preceitos
desses cursos e palestras.
Enquanto, isso o policial militar que incorre
na violência contra negros e negras poderia perder o posto e a patente? A
resposta para esta pergunta depende do “se” o policial for julgado indigno do
oficialato ou com ele incompatível. Assim, a pergunta que fica no ar é: o
policial que agrediu covardemente Eliane Silva, praticando contra ela uma
abordagem racista é indigno do oficialato amapaense ou com ele é compatível?
Esta pergunta deveria ser
respondida em sessão pública na Assembleia Legislativa do Estado do Amapá
(ALAP), convocando para responder a esta pergunta entre outras, o Secretário de
Justiça e Segurança Pública do Amapá (SEJUSP). A Comissão de Segurança Pública
(CSP) deve realizar audiência pública com o movimento negro do Amapá, mas não
devemos esperar a iniciativa parlamentar, também podemos realizar reclamações
perante a Comissão contra atos ou omissões de autoridades públicas prestadoras
de serviços públicos.
A segurança pública no
Amapá, portanto, deve ser levada em consideração do ponto de vista racial,
sobretudo se houvesse requerimento de um terço dos membros da ALAP, ou seja, 8
(oito) deputados estaduais para instituir uma Comissão Parlamentar de Inquérito
sobre a Polícia Militar do Amapá e o modos operandi de sua abordagem
policial, em especial contra negros e negras.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo
estrural / Silvio Luiz de Almeida – (Feminismos Plurais / coordenação de
Djamila Ribeiro) – São Paulo: Pólen, 2019.
ATLAS da Violência 2018. IPEA –
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Brasília, DF, jun, 2018.
LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação
penal criminal especial comentada: volume único – 4º. ed.rev. – atual. e
ampl. – Salvador: JusPODIVM, 2016.
Estudante de Direito – (CEAP)
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